quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Considerações sobre o que é o Humano e o que é Humanizar, Jaime Betts



O que é o humano? O humano é o efeito da combinação de três elementos: a materialidade do corpo, a imagem do corpo e a palavra que se inscreve no corpo.  
O que diferencia o ser humano da natureza e dos animais é que seu corpo biológico é capturado desde o início numa rede de imagens e palavras, apresentadas primeiro pela mãe, depois pelos familiares e em seguida pelo social. É esse banho de imagem e de linguagem que vai moldando o desenvolvimento do corpo biológico, transformando-o num ser humano, com um estilo de funcionamento e modo de ser singulares. 

O fato de sermos dotados de linguagem torna possível para nós a construção de redes de significados, que compartilhamos em maior ou menor medida com nossos semelhantes e que nos dão uma certa identidade cultural. Em função da dinâmica de combinação desses três elementos, somos capazes de transformar imagens em obras de arte, palavras em poesia e literatura e sons em fala e música, ignorância em saber e ciência. Somos capazes de produzir cultura e a partir dela, intervir e modificar a natureza. Por exemplo, transformando doença em saúde. 

Entretanto, acontece que a palavra pode fracassar e onde a palavra fracassa somos capazes também das maiores barbaridades. A destrutividade faz parte do humano e a história testemunha a que ponto somos capazes de chegar. O homem se torna lobo do homem. Passamos a utilizar tudo quanto sabemos em nome de destruir aos humanos que consideramos diferentes de nós e por isso mesmo achamos que constituem uma ameaça a ser eliminada. Essa destrutividade pode se manifestar em muitos níveis e intensidades, indo desde um não olhar no rosto e dar bom dia, até o ato de violência mais cruel e mortífero. 

Então, o que é humanizar? Entendido assim, humanizar é garantir à palavra a sua dignidade ética. Ou seja, o sofrimento humano, as percepções de dor ou de prazer no corpo, para serem humanizadas, precisam tanto que as palavras com que o sujeito as expressa sejam reconhecidas pelo outro, quanto esse sujeito precisa ouvir do outro palavras de seu reconhecimento. Pela linguagem fazemos as descobertas de meios pessoais de comunicação com o outro, sem o que nos desumanizamos reciprocamente. 

Isto é, sem comunicação não há humanização. A humanização depende de nossa capacidade de falar e ouvir, pois as coisas do mundo só se tornam humanas quando passam pelo diálogo com nossos semelhantes. 
O compromisso com a pessoa que sofre pode ter basicamente três, ou quatro, tipos de motivação. Pode resultar do sentimento de compaixão piedosa por quem sofre, ou da idéia de que assim contribuímos para o bem comum e para o bem-estar em geral. Pode resultar também da paixão pela investigação científica, que se funda sobre o ideal de uma pura “objetividade”, com a exclusão de tudo quanto lembre a subjetividade. Um quarto tipo de motivação de compromisso pode resultar da solidariedade genuína.  

Cada uma dessas motivações tem conseqüências distintas no que diz respeito à humanização. É interessante se observar que no transcurso do século XIX as três estratégias de políticas de assistência à saúde que predominaram são aquelas fundadas na ética da compaixão piedosa, no utilitarismo clássico de Bentham e Stuart Mill e no discurso tecno-científico, sendo que existe uma complementaridade entre essas três estratégias.  

Juntas, elas compõem as modernas estratégias de biopoder, que interferem em nossa existência na medida em que propõe uma nova utopia, a da saúde perfeita num corpo conceitual biônico Essas estratégias passam a assistir nossas necessidades mais elementares e íntimas, vigiando nossos movimentos, discutindo nossa sexualidade e vigiando nossos movimentos em nome de cuidar de nossa saúde. A saúde passa a ser valorizada como um bem acima de qualquer discussão, justificando assim formas coercitivas de controle social em nome da utilidade e da felicidade do maior número, da piedade compassiva pelos que sofrem e do condicionamento de comportamentos considerados mais saudáveis pelo saber médico científico higienista do momento. Tudo isso sem qualquer tipo de questionamento a respeito do que as pessoas envolvidas pensam e tem a dizer sobre o assunto. É preciso ressaltar aqui que a capacidade de cuidar, assistir e aliviar o sofrimento em saúde pública não implica necessariamente que a assistência seja uma intromissão coercitiva. 

A utopia da saúde perfeita surge de forma clara na própria definição da saúde proposto pela OMS em 1948, como sendo o “estado de completo bem-estar físico, mental e social, não meramente a ausência de doença ou enfermidade.” Essa definição tem o mérito de ampliar o escopo de um modelo estritamente biomédico de saúde como presença/ausência da doença ou enfermidade enquanto desvio da normalidade causada por uma etiologia específica e única, tratada pela suposta neutralidade científica da ciência médica. O aspecto utópico está contido na idéia de um estado de completo bem-estar. 

Sabemos, desde Mal-estar na Civilização , que um estado de completo bem-estar simplesmente não existe, a não ser na morte, como estado absoluto de ausência de tensão. Bem ao contrário do que a utopia da saúde perfeita propõe, a civilização moderna vem exigindo da humanidade cada vez mais renuncias às satisfações de seus impulsos e oferecendo cada vez menos referências simbólicas em nome das quais essas renuncias poderiam ser suportadas.  

A lógica da compaixão piedosa , por sua vez, compõe um jogo perverso e desumanizante, difícil de se evidenciar, pois é uma prática muito arraigada em nossa sociedade ocidental, tendo como figura principal no século passado a dama de caridade, que tinha um estatuto de benfeitora divina em função de seus atos de ofertar esmola e filantropia. A dama de caridade vem sendo progressivamente substituída pela enfermagem, herdeira maior dessa lógica que muitas vezes ainda motiva suas ações no ambiente hospitalar. 

O aspecto desumanizante da compaixão piedosa está no fato de que ela faz das diferenças o fundamento para relações dissimétricas que ela institui entre o benfeitor e o assistido. Essa lógica instaura um exercício de poder de coerção e submissão sob um discurso de humanismo desapaixonado e desinteressado, gerando, além da obediência e da dependência, uma sensação de dívida e gratidão eternas pela caridade recebida. 

Caponi ressalta que no ato de compaixão existe uma sutil defesa de nós mesmos, no sentido de nos libertarmos de um sentimento de dor que é nosso, pois o contratempo sofrido pelo outro nos faz sentir impotência, caso não corramos em socorro da vítima, e o temor de que o infortúnio possa nos acontecer. Ou seja, no ato de compaixão não estamos sendo completamente generosos e desinteressados, pois estamos indo, na verdade e em primeiro lugar, em socorro de nós mesmos. 

Outro aspecto é que existe na compaixão um fundo de vingança disfarçada, de sadismo mesmo, pois é preciso que o infortúnio e a desgraça existam e aconteçam com o outro para que nós possamos nos aliviar de nossa própria angústia ao mesmo tempo que supomos que nos engrandecemos moralmente com nossa caridade. É por isso que no sentimento de compaixão, segundo Nietzsche , a dor alheia é despojada do que ela tem de pessoal, de singular e irredutível, pois o compassivo julga o destino sem se preocupar em saber nada sobre as conseqüências e complicações interiores que o infortúnio tem para o outro. Ou seja, quando realizamos atos de caridade, agimos impulsionados pelo júbilo sádico provocado pelo espetáculo de uma situação, masoquista, oposta à nossa. 

O problema da compaixão, quando se amplia e passa a fundamentar políticas de assistência, segundo Caponi , é que ela permanece alheia ao diálogo e exclui a argumentação, pretendendo superar uma necessidade, que muitas vezes é urgente, pela força do imediatismo. 
Outra forma de motivação do compromisso com a pessoa que sofre é fornecida pelo utilitarismo, que faz da procura da maior felicidade para o maior número a medida para todas os atos. Ou seja, um ato é correto se produz as melhores conseqüências para o bem-estar humano. Acredita-se no utilitarismo que o prazer ou bem-estar de um sujeito pode ser medido e comparado com o de outro. Como na cultura do individualismo a felicidade coletiva só pode ser pensada como a soma das felicidades individuais, o problema passa a ser como fazer com que a procura da felicidade individual possa ser integrada nessa felicidade coletiva. A solução passou a ser criar instituições de controle capazes de controlar e regulamentar as condutas dos indivíduos e dentre estas instituições está o hospital, além dos reformatórios, presídios, asilos, etc. 

Nesse sentido, as instituições de assistência pública de saúde se fundamentam faz dois séculos pelos critérios de bem-estar geral, urgência social e de felicidade e interesse comuns. E suas ações, campanhas e programas partem das certezas de que sempre atuam em nome e pelo bem daqueles a quem pretendem ajudar, sendo que supõe conhecer esse bem de um modo claro e distinto, sem necessidade de consultar antes aos “beneficiados”. Uma política de assistência fundamentada sobre esses pressupostos prescinde de argumentos, exclui a palavra e emudece qualquer diálogo. 

Tanto a ética utilitarista, quanto a ética compassiva são, por si só, desumanizantes pelo fato de colocarem os princípios acima dos sujeitos envolvidos, banindo as decisões tomadas coletivamente com base no diálogo e argumentação, pois essas éticas consideram que os princípios religiosos ou de utilidade geral são os únicos que podem determinar de antemão o que dever ser levado em consideração e feito. 

Uma terceira motivação de compromisso com a pessoa que sofre é trazida pelo discurso tecno-científico e a paixão que a suposição de objetividade e neutralidade da ciência desperta no homem moderno. O desenvolvimento científico e tecnológico tem trazido uma série de benefícios, sem dúvida, mas tem como efeito colateral uma inadvertida promoção da desumanização. O preço que pagamos pela suposta objetividade da ciência é a eliminação da condição humana da palavra, da palavra que não pode ser reduzida à mera informação de anamnese, por exemplo. Quando preenchemos uma ficha de histórico clínico, não estamos escutando a palavra daquela pessoa e sim apenas recolhendo a informação necessária para o ato técnico. Indispensável, sem dúvida. Mas o lado humano ficou de fora. O ato técnico, por definição, elimina a dignidade ética da palavra, pois esta é necessariamente pessoal, subjetiva, e precisa do reconhecimento na palavra do outro. A dimensão desumanizante da ciência e tecnologia se dá, portanto, na medida em que ficamos reduzidos a objetos de nossa própria técnica e objetos despersonalizados de uma investigação que se propõe fria e objetiva. Um hospital pode ser nota 10 tecnologicamente e mesmo assim ser desumano no atendimento, por terminar tratando às pessoas como se fossem simples objetos de sua intervenção técnica, sem serem ouvidas em suas angústias, temores e expectativas (informação considerada desnecessária e perda de um tempo precioso) ou sequer informadas sobre o que está sendo feito com elas (o saber técnico supõe saber qual é o bem de seu paciente independentemente de sua opinião). 

Por outro lado, o problema em muitos locais é justamente a falta de condições técnicas, seja de capacitação, seja de materiais, e torna-se desumanizante pela má qualidade resultante no atendimento e sua baixa resolubilidade. Essa falta de condições técnicas e materiais também pode induzir à desumanização na medida em que profissionais e usuários se relacionem de forma desrespeitosa, impessoal e agressiva, piorando uma situação que já é precária. É importante lembrar, com o poeta, que mesmo em tempo ruim, agente ainda dá bom dia! Sempre podemos nos questionar diante de circunstâncias adversas a respeito do que podemos fazer mesmo assim para melhorar. 

Uma quarta motivação para o compromisso com quem está em sofrimento é propiciada pela solidariedade. A solidariedade abre uma perspectiva de humanização, pois ela somente se realiza quando a dimensão ética da palavra está colocada. Nesse sentido, segundo Caponi , a solidariedade implica uma preocupação por universalizar a dignidade humana, que precisa da mediação das palavras faladas e trocadas no diálogo com o outro para poder generalizar-se. Como uma relação autêntica com o outro implica um mínimo de alteridade e aceitação da pluralidade humana como algo irredutível, o laço social humanizante somente se constrói pela mediação da palavra. É somente pela mediação da palavra trocada com o outro que podemos tornar inteligíveis nossos próprios pensamentos, anseios, temores e sofrimentos. Nossos sentimentos e sensibilidades só tomam forma e expressão na relação simbólica com o outro. Enfim, as coisas do mundo se tornam humanas quando as discutimos com nossos semelhantes. 

Nesse sentido, humanizar a assistência hospitalar implica dar lugar tanto à palavra do usuário quanto à palavra dos profissionais da saúde, de forma que possam fazer parte de uma rede de diálogo, que pense e promova as ações, campanhas, programas e políticas assistenciais a partir da dignidade ética da palavra, do respeito, do reconhecimento mútuo e da solidariedade. 

1. Didier-Weill, A. A Nota Azul – Freud, Lacan ea Arte. Rio de Janeiro, Ed. Contracapa, 1997. 
2. Caponi, S. Da Compaixão à Solidariedade – uma genealogia da assistência medica. Rio de Janeiro, Ed. Fiocruz, 2000. 
3. Idem. 
4. Sfez, L. A Saúde Perfeita. São Paulo, Ed. Loyola, 1996. 
5. Freud, S. O Mal-Estar na Civilização (1930). Edição Standard das Obras Completas de S. Freud, Vol. XXI. Rio de Janeiro, Ed. Imago. 
6. Caponi, S. Idem. 
7. Idem. 
8. Nietzsche. A Gaya Ciência. Os Pensadores. São Paulo, Ed. Nova Cultural, 1987. 
9. Caponi. Idem. 
10. Dumont, L. O Individualismo. Rio de Janeiro, Rocco, 1981. 
11. Caponi. Idem.

Crédito: Portal Humaniza

sábado, 6 de agosto de 2011

Comunidade Terapêutica de horrores, maus tratos, tortura, sadismo e outro PASTOR



TORTURA NUNCA MAIS ?!

Drogas - A casa dos horrores

Fonte: Zero Hora

Ao tentar escapar de um drama, o motorista Adriano Seres de Abreu, 33 anos, diz ter conhecido outro em 15 de março - MAURO GRAEFF JÚNIOR

Para expurgar o crack de sua vida, Adriano procurou a Cidade do Refúgio, uma comunidade terapêutica que recebe dependentes químicos em Guaíba. Conta ter passado por dois meses de intimidações, surras diárias e até choques elétricos - justo no lugar onde esperava achar a redenção.

- Quando cheguei, um cara pegou uma cartela com remédios e mandou eu tomar. Eu disse: "Eu não vou tomar isso aí. Não sei que remédio é esse". Na segunda vez que falei que não tomaria, levei um soco na boca do estômago. Aí eu já vi que estava em maus lençóis - afirma.

Próprios dos livros de história medieval, relatos como o de Adriano recheiam 400 páginas recém-concluídas pela Polícia Civil e entregues sexta-feira à Justiça. O documento aponta práticas de tortura, maus-tratos e cárcere privado nas cinco unidades da comunidade terapêutica, que atendiam a 355 pessoas de 20 municípios. O proprietário, o pastor Tarcílio Quirino, e dois monitores estão presos preventivamente. Além deles, outros seis monitores - dois deles foragidos - foram indiciados por 11 crimes. Mais de 60 ex-internos asseguram à polícia e ao Ministério Público (MP) que choque elétrico, agressões a pauladas e corte nos pés eram comuns.

- Havia prática de tortura, com castigo pessoal contra os internos que tentavam fugir ou não cumpriam estritamente as ordens dadas, muitas vezes por puro sadismo - diz a promotora Cinara Vianna Dutra Braga.

Cinara descobriu as agressões por um jovem que, ao escapar do centro, procurou o Ministério Público. O depoimento deu a partida nas investigações e levou a promotora no dia 6 à unidade Logradouro, a 12 quilômetros da área central da cidade, onde havia 120 homens que rezavam numa sala improvisada como capela.

Com um mandado de busca e apreensão nas mãos, ela chegou ao local acompanhada da Brigada Militar. Só encontrou pedaços de pau e uma espada. Até aquele momento, ela tinha só suspeita das agressões. Foi quando escutou um grito desesperado.

- Doutora, me tira daqui! Estou apanhando. Quero sair.

Castigos começaram há oito meses, dizem ex-internos

Cinara preferiu a cautela. Desconfiou de que fosse apenas um ataque de abstinência de um dependente químico, mas perguntou:

- Quem está aqui contra sua vontade? Quem quer ir embora?

Como resposta, ela viu subirem as mãos de 50 jovens, que reclamavam de tortura. Ali, a queixa do interno fugitivo começava a se confirmar.

Um grupo de 17 jovens foi retirado do local e levado à delegacia. Outros 31 homens foram embora no dia seguinte. Iria começar a seqüência de relatos dramáticos.

- Fui queimado com uma concha de feijão quebrada, aquecida em um fogão a lenha. Cortaram meus pés com uma espada - descreveu um jovem de 19 anos em um dos primeiros depoimentos.

Dependentes afirmam que as agressões partiam dos monitores (os "obreiros"), que não admitiam desrespeito às regras rígidas da casa, como as tarefas na horta e horários das refeições. Os castigos teriam começado há oito meses, com o conhecimento do pastor Quirino, garantem os ex-internos.

- O pastor sabia das agressões, presenciava e instigava - sentencia a delegada Tatiana Bastos.

As cinco unidades da Cidade do Refúgio, onde Quirino pregava a palavra de Deus, estão abandonadas. Só em uma delas há oito internos que se negam a sair. Elas foram interditadas pela Vigilância Sanitária, e o MP solicitou à Justiça o fechamento. Ficaram camas reviradas e cartas anônimas em que ex-internos contam o terror. Em uma delas, um jovem rabiscou:

"Sou um drogado, mas não mereço ser humilhado e tratado como um bicho, ser massacrado por quem nunca vi na vida, o meu Deus."

As queixas - Confira as reclamações dos ex-internos, citadas à Polícia Civil e ao Ministério Público:

Corte na sola dos pés - Os monitores usariam uma espada para cortar a sola dos pés dos jovens capturados tentando fugir. A espada também teria sido usada contra o pescoço dos dependentes para ameaçá-los

Queimaduras - Repelentes para mosquito (tipo boa-noite) serviriam para queimar os pés dos "rebeldes". O castigo geralmente ocorria quando quando os internos estavam sob efeito de medicamentos

Escavação de buracos - Quem descumpria as regras seria obrigado a cavar buracos no pátio. Haveria duas formas principais para cumprir essa punição: a escavação de um buraco com dois metros de profundidade com pá e picareta e a escavação com uma colher de sopa, considerada a mais cruel. Internos ficariam até quatro horas cavando na terra. Se a colher quebrasse, o trabalho precisava seguir mesmo sem o cabo

Choques elétricos - Um aparelho artesanal com fios e transformadores serviria para dar choques. As descargas seriam aplicadas nas orelhas, nos braços e nos dedos

Afogamento - Os jovens sofreriam afogamento em uma fossa e num açude que havia nos fundos de uma das casas. Os monitores mergulhavam os internos por segundos e depois os deixavam respirar

Surra - É o método mais citado. Pedaços de paus seriam usados para castigar quem pedisse para ir embora. Jovens também teriam sido vítimas de socos e pontapés

Espancamento mútuo - Internos teriam sido obrigados a bater em colegas, sob pena se serem espancados se não cumprissem a ordem. Um jovem contou que foi forçado a dar socos e pontapés em um amigo dele e depois obrigado a apanhar quieto

Medicamentos - Os jovens seriam obrigados a tomar medicamentos para adormecer. Um deles contou que chegou a dormir por três dias e três noites



Para defesa do Pastor, as queixas são equivocadas

Defensora do pastor Tarcílio Quirino, a advogada Andréia Fioravante diz que ele nunca presenciou agressões no local. Andréia admite que pode ter havido brigas internas, mas sem consentimento da direção.

- Se aconteceu alguma agressão, foi à revelia de Quirino - observa.

Para ela, alguns depoimentos podem ser fantasiosos:

- A maioria dos depoimentos é de internos que estavam lá há pouco tempo, naquele período crítico de abstinência. Quase todos eram usuários de crack, que, quando ficam em abstinência, têm confusões mentais.

A defesa lamenta o episódio, porque arranha a imagem da Cidade do Refúgio. Ela conta que a instituição já atendeu a mais de 2 mil pessoas, entre dependentes e familiares.

- Muita gente era recuperada das drogas por ele. Seu trabalho cobria um lacuna deixada pelos gestores públicos - sublinha.

Andréia tenta conseguir no Tribunal de Justiça a liberdade do pastor, que está no Presídio Central. A Justiça de Guaíba já negou dois pedidos de liberdade.

Boa oratória consolidou prestígio. Bastavam dois minutos de conversa com o pastor Tarcílio Quirino para ele apresentar seu cartão de visitas:

- Meu amigo, eu estive preso no Carandiru (complexo de presídios desativado em São Paulo) por envolvimento com drogas e roubo. Encontrei Deus e me recuperei.

Foi com esse discurso que conquistou amigos e apoio para montar a primeira unidade da Cidade do Refúgio, há mais de 10 anos. Com boa oratória, fez amizades pelo Estado. Percorria gabinetes de parlamentares, freqüentava reuniões em órgãos públicos e visitava juízes. Recebeu homenagens até na Câmara de Vereadores da Capital. Alimentada pelo prestígio de seu dono, a Cidade do Refúgio conheceu o crescimento: em uma década, conseguiu criar cinco unidades (quatro para homens e uma feminina). Para angariar recursos, ele alardeava que só recebia contribuições voluntárias dos familiares - um discurso falso, para a delegada Tatiana Bastos.

- Ele cobrava em média R$ 400, mas temos casos de pessoas que pagavam até R$ 700 por mês - diz.

Respeitado em Guaíba, Quirino recebia mantimentos e roupas arrecadadas pela prefeitura e Justiça. Até 2007, a entidade era contemplada com uma verba municipal de R$ 2 mil mensais. As formaturas de jovens que largaram o vício eram prestigiadas por autoridades municipais. A suspeita do envolvimento do pastor com tortura sacudiu a cidade.

- No começo, não acreditei. Depois que assisti a quase 70 depoimento e vi as pessoas feridas, fiquei horrorizado. Acho que ele (Quirino) perdeu o controle - surpreende-se Jorge Santos, secretário de Ação Social Guaíba, que encaminhava jovens à Cidade do Refúgio.

"Nos últimos tempos, ficou muito cruel", diz Jovem de 18 anos, morador de Guaíba, que pediu para não ser identificado

"Fiquei nove meses lá. Passei 20 dias fora, mas tive uma recaída porque voltei a usar crack e minha mãe me internou de novo. Antes não era assim. Sempre houve intimidação, mas nunca vi agressão daquele jeito. Nos últimos tempos, a coisa ficou muito cruel. No terceiro dia depois da minha volta, me colocaram em uma salinha com cinco ex-drogados que trabalhavam na casa e comecei a ser agredido com tapas do rosto e socos na barriga. Pegaram um bastão e começaram a dar pauladas nas minhas costas, nas pernas e nos braços. Se reclamasse, apanhava mais. Mandaram eu ajoelhar na frente deles. Eu não ajoelhei porque falei que eles não eram Deus. Aí bateram na minha perna com um pau até eu cair (o jovem está internado em uma clínica com a perna inchada). A salinha de apanhar era chamada por eles de consultório ou confessionário. Diziam assim: Tu tem uma consulta com o doutor Camboim. Camboim era como eles chamavam os pedaços de pau. Levei choques no antebraço. Diziam que era para ficar esperto ".

"Nos primeiros 30 dias, levei umas 20 tundas", diz Adriano Seres de Abreu, 33 anos, morador de Porto Alegre

"Nos primeiros dias, agüentei pensando que, na outra semana, falaria com minha mãe, que iria me visitar. Eu tinha 24 dias de casa quando houve a primeira visita. Eles me chaparam de remédio e ligaram para minha mãe dizendo que eu não poderia receber visita. Eles não deixaram eu falar com ela porque sabiam que eu ia contar tudo. Vi que não adiantava fazer nada, aí me aquietei. Nos primeiros 30 dias de internação, levei umas 20 tundas. Em um dia, apanhei três vezes. Uma vez foi porque troquei com outro interno um tênis por um pacote de bolacha. Eu uso prótese no dente. Eles levaram um aluno para me bater. Até hoje minha prótese está quebrada por trás. Com a prótese quebrada, ainda me humilhavam mandando dar uma risada para todo mundo ver. Os caras (os monitores) eram muitos ruins. Muito ruins mesmo. Eram bandidos para caramba. Eles não queriam que ninguém saísse para não perder o dinheiro que recebiam."

Episódio expõe falta de fiscalização

Ligada ao governo federal, a Secretaria Nacional Antidrogas (Senad) reconhece a falta de fiscalização de comunidades terapêuticas. Manoel Teles, coordenador de projetos, afirma que a secretaria discute alternativas para aumentar o controle sobre os centros, que se proliferam diante do aumento de dependentes e da deficiência no atendimento público. Carlos Alberto Salgado, coordenador do Departamento de Dependência Química da Associação de Psiquiatria do RS, observa que há ótimos trabalhos nas comunidades terapêuticas. Ele lembra dos cuidados para internar um dependente:

- A família deve ter acesso às dependências do local e ninguém deve ficar preso onde não quer.

Comentário do Bengochea - Este caso é mais uma prova da ausência e do desinteresse do Estado nas questões de ordem pública. Mesmo sendo as drogas a mola propulsora da violência e da criminalidade, o Estado só vê o aspecto repressivo e não enxerga a necessidade de investir na prevenção e no tratamento das dependências químicas, esquecendo seus efeitos e deixando de controlar quem trata visando o interesse financeiro. Quem deveria ser reponsabilizado são os governantes, por desrespeito à ordem, à saúde e aos direitos humanos.


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