O que é o humano? O humano é o efeito da combinação de três elementos: a materialidade do corpo, a imagem do corpo e a palavra que se inscreve no corpo.
O que diferencia o ser humano da natureza e dos animais é que seu corpo biológico é capturado desde o início numa rede de imagens e palavras, apresentadas primeiro pela mãe, depois pelos familiares e em seguida pelo social. É esse banho de imagem e de linguagem que vai moldando o desenvolvimento do corpo biológico, transformando-o num ser humano, com um estilo de funcionamento e modo de ser singulares.
O fato de sermos dotados de linguagem torna possível para nós a construção de redes de significados, que compartilhamos em maior ou menor medida com nossos semelhantes e que nos dão uma certa identidade cultural. Em função da dinâmica de combinação desses três elementos, somos capazes de transformar imagens em obras de arte, palavras em poesia e literatura e sons em fala e música, ignorância em saber e ciência. Somos capazes de produzir cultura e a partir dela, intervir e modificar a natureza. Por exemplo, transformando doença em saúde.
Entretanto, acontece que a palavra pode fracassar e onde a palavra fracassa somos capazes também das maiores barbaridades. A destrutividade faz parte do humano e a história testemunha a que ponto somos capazes de chegar. O homem se torna lobo do homem. Passamos a utilizar tudo quanto sabemos em nome de destruir aos humanos que consideramos diferentes de nós e por isso mesmo achamos que constituem uma ameaça a ser eliminada. Essa destrutividade pode se manifestar em muitos níveis e intensidades, indo desde um não olhar no rosto e dar bom dia, até o ato de violência mais cruel e mortífero.
Então, o que é humanizar? Entendido assim, humanizar é garantir à palavra a sua dignidade ética. Ou seja, o sofrimento humano, as percepções de dor ou de prazer no corpo, para serem humanizadas, precisam tanto que as palavras com que o sujeito as expressa sejam reconhecidas pelo outro, quanto esse sujeito precisa ouvir do outro palavras de seu reconhecimento. Pela linguagem fazemos as descobertas de meios pessoais de comunicação com o outro, sem o que nos desumanizamos reciprocamente.
Isto é, sem comunicação não há humanização. A humanização depende de nossa capacidade de falar e ouvir, pois as coisas do mundo só se tornam humanas quando passam pelo diálogo com nossos semelhantes.
O compromisso com a pessoa que sofre pode ter basicamente três, ou quatro, tipos de motivação. Pode resultar do sentimento de compaixão piedosa por quem sofre, ou da idéia de que assim contribuímos para o bem comum e para o bem-estar em geral. Pode resultar também da paixão pela investigação científica, que se funda sobre o ideal de uma pura “objetividade”, com a exclusão de tudo quanto lembre a subjetividade. Um quarto tipo de motivação de compromisso pode resultar da solidariedade genuína.
Cada uma dessas motivações tem conseqüências distintas no que diz respeito à humanização. É interessante se observar que no transcurso do século XIX as três estratégias de políticas de assistência à saúde que predominaram são aquelas fundadas na ética da compaixão piedosa, no utilitarismo clássico de Bentham e Stuart Mill e no discurso tecno-científico, sendo que existe uma complementaridade entre essas três estratégias.
Juntas, elas compõem as modernas estratégias de biopoder, que interferem em nossa existência na medida em que propõe uma nova utopia, a da saúde perfeita num corpo conceitual biônico Essas estratégias passam a assistir nossas necessidades mais elementares e íntimas, vigiando nossos movimentos, discutindo nossa sexualidade e vigiando nossos movimentos em nome de cuidar de nossa saúde. A saúde passa a ser valorizada como um bem acima de qualquer discussão, justificando assim formas coercitivas de controle social em nome da utilidade e da felicidade do maior número, da piedade compassiva pelos que sofrem e do condicionamento de comportamentos considerados mais saudáveis pelo saber médico científico higienista do momento. Tudo isso sem qualquer tipo de questionamento a respeito do que as pessoas envolvidas pensam e tem a dizer sobre o assunto. É preciso ressaltar aqui que a capacidade de cuidar, assistir e aliviar o sofrimento em saúde pública não implica necessariamente que a assistência seja uma intromissão coercitiva.
A utopia da saúde perfeita surge de forma clara na própria definição da saúde proposto pela OMS em 1948, como sendo o “estado de completo bem-estar físico, mental e social, não meramente a ausência de doença ou enfermidade.” Essa definição tem o mérito de ampliar o escopo de um modelo estritamente biomédico de saúde como presença/ausência da doença ou enfermidade enquanto desvio da normalidade causada por uma etiologia específica e única, tratada pela suposta neutralidade científica da ciência médica. O aspecto utópico está contido na idéia de um estado de completo bem-estar.
Sabemos, desde Mal-estar na Civilização , que um estado de completo bem-estar simplesmente não existe, a não ser na morte, como estado absoluto de ausência de tensão. Bem ao contrário do que a utopia da saúde perfeita propõe, a civilização moderna vem exigindo da humanidade cada vez mais renuncias às satisfações de seus impulsos e oferecendo cada vez menos referências simbólicas em nome das quais essas renuncias poderiam ser suportadas.
A lógica da compaixão piedosa , por sua vez, compõe um jogo perverso e desumanizante, difícil de se evidenciar, pois é uma prática muito arraigada em nossa sociedade ocidental, tendo como figura principal no século passado a dama de caridade, que tinha um estatuto de benfeitora divina em função de seus atos de ofertar esmola e filantropia. A dama de caridade vem sendo progressivamente substituída pela enfermagem, herdeira maior dessa lógica que muitas vezes ainda motiva suas ações no ambiente hospitalar.
O aspecto desumanizante da compaixão piedosa está no fato de que ela faz das diferenças o fundamento para relações dissimétricas que ela institui entre o benfeitor e o assistido. Essa lógica instaura um exercício de poder de coerção e submissão sob um discurso de humanismo desapaixonado e desinteressado, gerando, além da obediência e da dependência, uma sensação de dívida e gratidão eternas pela caridade recebida.
Caponi ressalta que no ato de compaixão existe uma sutil defesa de nós mesmos, no sentido de nos libertarmos de um sentimento de dor que é nosso, pois o contratempo sofrido pelo outro nos faz sentir impotência, caso não corramos em socorro da vítima, e o temor de que o infortúnio possa nos acontecer. Ou seja, no ato de compaixão não estamos sendo completamente generosos e desinteressados, pois estamos indo, na verdade e em primeiro lugar, em socorro de nós mesmos.
Outro aspecto é que existe na compaixão um fundo de vingança disfarçada, de sadismo mesmo, pois é preciso que o infortúnio e a desgraça existam e aconteçam com o outro para que nós possamos nos aliviar de nossa própria angústia ao mesmo tempo que supomos que nos engrandecemos moralmente com nossa caridade. É por isso que no sentimento de compaixão, segundo Nietzsche , a dor alheia é despojada do que ela tem de pessoal, de singular e irredutível, pois o compassivo julga o destino sem se preocupar em saber nada sobre as conseqüências e complicações interiores que o infortúnio tem para o outro. Ou seja, quando realizamos atos de caridade, agimos impulsionados pelo júbilo sádico provocado pelo espetáculo de uma situação, masoquista, oposta à nossa.
O problema da compaixão, quando se amplia e passa a fundamentar políticas de assistência, segundo Caponi , é que ela permanece alheia ao diálogo e exclui a argumentação, pretendendo superar uma necessidade, que muitas vezes é urgente, pela força do imediatismo.
Outra forma de motivação do compromisso com a pessoa que sofre é fornecida pelo utilitarismo, que faz da procura da maior felicidade para o maior número a medida para todas os atos. Ou seja, um ato é correto se produz as melhores conseqüências para o bem-estar humano. Acredita-se no utilitarismo que o prazer ou bem-estar de um sujeito pode ser medido e comparado com o de outro. Como na cultura do individualismo a felicidade coletiva só pode ser pensada como a soma das felicidades individuais, o problema passa a ser como fazer com que a procura da felicidade individual possa ser integrada nessa felicidade coletiva. A solução passou a ser criar instituições de controle capazes de controlar e regulamentar as condutas dos indivíduos e dentre estas instituições está o hospital, além dos reformatórios, presídios, asilos, etc.
Nesse sentido, as instituições de assistência pública de saúde se fundamentam faz dois séculos pelos critérios de bem-estar geral, urgência social e de felicidade e interesse comuns. E suas ações, campanhas e programas partem das certezas de que sempre atuam em nome e pelo bem daqueles a quem pretendem ajudar, sendo que supõe conhecer esse bem de um modo claro e distinto, sem necessidade de consultar antes aos “beneficiados”. Uma política de assistência fundamentada sobre esses pressupostos prescinde de argumentos, exclui a palavra e emudece qualquer diálogo.
Tanto a ética utilitarista, quanto a ética compassiva são, por si só, desumanizantes pelo fato de colocarem os princípios acima dos sujeitos envolvidos, banindo as decisões tomadas coletivamente com base no diálogo e argumentação, pois essas éticas consideram que os princípios religiosos ou de utilidade geral são os únicos que podem determinar de antemão o que dever ser levado em consideração e feito.
Uma terceira motivação de compromisso com a pessoa que sofre é trazida pelo discurso tecno-científico e a paixão que a suposição de objetividade e neutralidade da ciência desperta no homem moderno. O desenvolvimento científico e tecnológico tem trazido uma série de benefícios, sem dúvida, mas tem como efeito colateral uma inadvertida promoção da desumanização. O preço que pagamos pela suposta objetividade da ciência é a eliminação da condição humana da palavra, da palavra que não pode ser reduzida à mera informação de anamnese, por exemplo. Quando preenchemos uma ficha de histórico clínico, não estamos escutando a palavra daquela pessoa e sim apenas recolhendo a informação necessária para o ato técnico. Indispensável, sem dúvida. Mas o lado humano ficou de fora. O ato técnico, por definição, elimina a dignidade ética da palavra, pois esta é necessariamente pessoal, subjetiva, e precisa do reconhecimento na palavra do outro. A dimensão desumanizante da ciência e tecnologia se dá, portanto, na medida em que ficamos reduzidos a objetos de nossa própria técnica e objetos despersonalizados de uma investigação que se propõe fria e objetiva. Um hospital pode ser nota 10 tecnologicamente e mesmo assim ser desumano no atendimento, por terminar tratando às pessoas como se fossem simples objetos de sua intervenção técnica, sem serem ouvidas em suas angústias, temores e expectativas (informação considerada desnecessária e perda de um tempo precioso) ou sequer informadas sobre o que está sendo feito com elas (o saber técnico supõe saber qual é o bem de seu paciente independentemente de sua opinião).
Por outro lado, o problema em muitos locais é justamente a falta de condições técnicas, seja de capacitação, seja de materiais, e torna-se desumanizante pela má qualidade resultante no atendimento e sua baixa resolubilidade. Essa falta de condições técnicas e materiais também pode induzir à desumanização na medida em que profissionais e usuários se relacionem de forma desrespeitosa, impessoal e agressiva, piorando uma situação que já é precária. É importante lembrar, com o poeta, que mesmo em tempo ruim, agente ainda dá bom dia! Sempre podemos nos questionar diante de circunstâncias adversas a respeito do que podemos fazer mesmo assim para melhorar.
Uma quarta motivação para o compromisso com quem está em sofrimento é propiciada pela solidariedade. A solidariedade abre uma perspectiva de humanização, pois ela somente se realiza quando a dimensão ética da palavra está colocada. Nesse sentido, segundo Caponi , a solidariedade implica uma preocupação por universalizar a dignidade humana, que precisa da mediação das palavras faladas e trocadas no diálogo com o outro para poder generalizar-se. Como uma relação autêntica com o outro implica um mínimo de alteridade e aceitação da pluralidade humana como algo irredutível, o laço social humanizante somente se constrói pela mediação da palavra. É somente pela mediação da palavra trocada com o outro que podemos tornar inteligíveis nossos próprios pensamentos, anseios, temores e sofrimentos. Nossos sentimentos e sensibilidades só tomam forma e expressão na relação simbólica com o outro. Enfim, as coisas do mundo se tornam humanas quando as discutimos com nossos semelhantes.
Nesse sentido, humanizar a assistência hospitalar implica dar lugar tanto à palavra do usuário quanto à palavra dos profissionais da saúde, de forma que possam fazer parte de uma rede de diálogo, que pense e promova as ações, campanhas, programas e políticas assistenciais a partir da dignidade ética da palavra, do respeito, do reconhecimento mútuo e da solidariedade.
1. Didier-Weill, A. A Nota Azul – Freud, Lacan ea Arte. Rio de Janeiro, Ed. Contracapa, 1997.
2. Caponi, S. Da Compaixão à Solidariedade – uma genealogia da assistência medica. Rio de Janeiro, Ed. Fiocruz, 2000.
3. Idem.
4. Sfez, L. A Saúde Perfeita. São Paulo, Ed. Loyola, 1996.
5. Freud, S. O Mal-Estar na Civilização (1930). Edição Standard das Obras Completas de S. Freud, Vol. XXI. Rio de Janeiro, Ed. Imago.
6. Caponi, S. Idem.
7. Idem.
8. Nietzsche. A Gaya Ciência. Os Pensadores. São Paulo, Ed. Nova Cultural, 1987.
9. Caponi. Idem.
10. Dumont, L. O Individualismo. Rio de Janeiro, Rocco, 1981.
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