Dor do Abandono
Rosemeire Zago
Sensação de abandono na infância gera complexos
Um dos sentimentos mais difíceis de serem superados creio que seja a dor do abandono, da rejeição, da perda, que para muitas pessoas começa logo cedo. Não me refiro só ao abandono cujos pais o deixaram desde o nascimento. Mesmo quem teve pai e mãe presente, pode sentir-se abandonado, se sentir que sua mãe não o escutava, não ouvia. Quando a criança não é aceita em sua realidade, ela não vivencia a autenticidade de seus próprios sentimentos. Não é preciso que a criança seja órfã para ter esses sentimentos, mas é claro que serão mais intensos em quem realmente viveu ou vive a orfandade.
Quando o relacionamento primário fundamental foi comprometido, não havendo um envolvimento total dos pais com os cuidados básicos da criança, ela desenvolverá mecanismos inconscientes para contar com seus próprios recursos. É quando o bebê experimenta o abandono e passa desde muito cedo a agir como um ser independente, como se no fundo soubesse que não pode contar com mais ninguém. Diante desse abandono podemos encontrar três complexos psicológicos principais. Entendemos por complexo uma determinada situação psíquica de forte carga emocional, que muitos conhecem como "trauma". Ou seja, os complexos são portadores da energia afetiva.
Esses três complexos são:
- Profunda sensação de ausência pessoal de valor:
O calor materno oferece à criança a sensação de valor. Quando esse amor deixa de existir a pessoa se sente rejeitada, acha que fez alguma coisa errada, sendo assim, inaceitável, e passa a duvidar da razão de sua própria existência. Sentimento que pode perdurar durante anos ou uma vida inteira dentro de algumas pessoas e refletir em todas áreas de sua vida. A tão conhecida baixa auto-estima. A sensação de ter valor é essencial à saúde mental, pois quando se sente valiosa, a pessoa cuidará de si mesma de todas as maneiras que forem necessárias.
- Sensação de culpa:
Essa culpa não deve ser confundida com a culpa mais consciente que a pessoa sente quando faz algo. É uma culpa mais profunda, onde acaba por se culpar por não ser amado, aceito. Essa busca pela mãe, ou pela fonte de carinho e amor, pode desencadear outros processos na vida da pessoa. É como se estivesse sempre em busca dessa proteção. Sente que tem uma dor que não pode ser aliviada, e assim, acaba por sentir pena de si mesmo, desenvolvendo muitas vezes a auto-piedade. Espera, ainda, que os outros também a vejam assim, sempre esperando que alguém venha salvá-la.
Esse quadro pode gerar relacionamentos de muita dependência. Como perdeu sua ligação com a fonte de sustentação da vida, apega-se a toda pessoa que possa lhe oferecer segurança. Alguns se apegam a qualquer objeto, pessoa ou forma de comportamento que representa segurança, como sexo, dinheiro, comida, drogas, entre outros. Até o momento de perceber, o que muitas vezes pode levar anos, que esse objeto não tem o mesmo significado e não irá efetivamente suprir essa carência e esse vazio.
Poderá também desenvolver muita dificuldade em lidar com a solidão. Como não tem o bastante de si mesma, sente que tem valor apenas quando está na presença de outra pessoa, como se fosse vital para sua sobrevivência. Pode ainda desenvolver uma dependência mútua, criando um verdadeiro elo simbiótico inconsciente, ou seja, o que muitos vivem e conhecem como relação doentia. Onde nenhum dos dois consegue deixar esse vínculo, apesar do sofrimento instalado. Essa situação de excessiva dependência entre duas pessoas cria uma situação psicológica improdutiva e, conseqüentemente, não há troca, crescimento, mas sim muito sofrimento. Torna-se uma situação difícil de ser rompida, pois há muito medo de ser deixado, ficar só, evitando a todo custo, mais um abandono.
Poderá ainda acontecer o contrário, a pessoa mesmo querendo manter a relação, abandona a outra pessoa, para que ela mesma não seja abandonada. Essa situação de dependência pode fazer com que a pessoa torne-se a criança-vítima, ou seja, procura ser boazinha com o intuito de ser cuidada, gerando a necessidade de agradar e a dificuldade de dizer não, buscando sempre e, inconscientemente, aprovação e reconhecimento. É preciso tornar consciente sua dependência e suas eventuais conseqüências para que não fique repetindo situações de abandono.
- Profunda atração pela morte:
Para a criança, o abandono por parte dos pais é equivalente à morte. Essa sensação é mais profunda em quem realmente perdeu a mãe no momento do nascimento. Mas também por quem não foi literalmente abandonado, mas vivenciou esse medo, ele pode ressurgir mais acentuadamente em momentos de renascimento ou quando algum projeto está para ser iniciado, como em momentos de mudança, pois todo caos que precede a cada novo nascimento acaba por gerar um doloroso processo de recordação de sua experiência traumática inicial do abandono, podendo facilmente sentir-se imobilizado frente ao desconhecido, sem permitir-se crescer, transcender, resistindo às mudanças.
Pode existir em algumas pessoas a síndrome do aniversário, onde revive nesse dia seu trauma de infância, o abandono, evitando assim, qualquer tipo de comemoração.
Para lidar com todos esses aspectos o mais indicado é ter consciência de todo esse processo e, principalmente, dos sentimentos que surgem. Falar sobre eles poderá ajudar a integrar conteúdos que estão no inconsciente ao consciente.
É preciso aceitar toda essa realidade e não negar seus sentimentos e carências, assim suas necessidades poderão ser supridas de maneira equilibrada e consciente e não através de relações doentias.
Ao se permitir sentir dor, raiva, mágoa e tristeza, poderá começar a amenizar sua dependência e assumir mais responsabilidade por si mesmo e por seus sentimentos.
Quando esses presentes, carinho, afeto, demonstrações constantes de amor, como a certeza de que não será abandonado, não foram dados pelos pais, é possível obtê-los de outras fontes, porém esse processo em geral, dura a vida inteira. Mas é possível transformar toda a dor do abandono ao interagir com essa criança que apenas espera por seu amor.